Sou viramundo virado
Pelo mundo do sertão
Mas inda viro este mundo
Em festa, trabalho e pão
Virado será o mundo
E viramundo verão

Gilberto Gil


Hoje, aos 66 anos, Vera Santana, educadora e líder comunitária da região de Felipe Camarão, Natal, RN, recorda com muitos detalhes sua infância. 

A primeira coisa que vem a sua mente é o mar e a saudosa lembrança de quando sua avó Cândida levava ela e sua irmã à praia nos primeiros raios da manhã, para tomar um banho de água salgada. A atividade era a primeira coisa do dia e a mais importante, porque acordavam e logo se vestiam com roupas de banho, deixando a vontade de ir ao banheiro só depois para quando voltassem. 

Para sua avó, o mar era o símbolo da renovação da vida e do pensamento, uma fonte de energia para os dias caóticos e um espaço de repouso para o cansaço. 
Ainda hoje, tendo a idade que sua avó tinha quando fazia este ritual com ela, Vera sempre retorna ao oceano ao amanhecer, pois “em todo momento em que não sei qual direção tomar, basta um banho de mar”, afirma ela.​​

A infância é um momento muito significativo para a educadora, pois é nesta fase que começa a definir os rumos de sua vida e ter as influências que carrega consigo até hoje. Crescida em uma casa de mulheres fortes, líderes e importantes na região onde viviam em Natal, RN, Vera logo aprendeu que a educação não era apenas uma ferramenta do ser humano, mas um caminho importante de ser traçado por toda humanidade. Além disso, a partir de todo o repertório cultural a que foi exposta — as idas ao cinema local com sua mãe e as escutas que fazia no rádio da cidade com sua avó — fizeram que Vera também fincasse raízes na cultura, entendendo que estes dois campos, educação e cultura, eram o fundamento da sociedade. 

Ainda em seu processo de formação, Vera viveu um momento muito turbulento da história nacional. Em certa manhã, ao acordar para ir à escola, encontrou o prédio onde estudava de muros fechados, com tanques de guerra e militares por todo o lado. Sem entender ao certo o que estava acontecendo, voltou para casa e encontrou sua avó ao lado do rádio, escutando a seguinte afirmação: “Hoje começou a revolução!”. Aquele dia era 01 de abril de 1964 e começava ali a ditadura militar no Brasil. Os anos de chumbo foram difíceis para a garota que amava as artes e participava dos movimentos estudantis e juvenis da época em que idealizam um Brasil artístico, plural e diverso, algo proibido pela censura a partir daquele momento. Ao relembrar este período, Vera afirma: “é um momento de muita dor, muito difícil para mim. Naquela época tive de estar reclusa da sociedade pelo bem dos meus amigos e da minha família”.
 

Mesmo em casa e distante daqueles que amavam, Vera continuou os estudos e, aos 14 anos, se tornou educadora. Nesta fase, teve contato com um grupo de educadores que trabalhavam com a alfabetização de adultos tendo como base as metodologias de Paulo Freire e partiu, em toda região do Rio Grande do Norte, alfabetizando pessoas e tendo seu primeiro contato com a profissão que levaria consigo até os dias atuais. Ser educadora é algo que a deixa com muito orgulho e acredita ser hereditário, uma vez que considera sua mãe e avó educadoras natas, mesmo sem terem cursado faculdade ou curso de especialização.

Crescendo e se tornando a professora que é, Vera começou a dar aulas para alunos com deficiência e ali, na rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte, solidificou a sua jornada controversa, que resultou em processos educativos de qualidade. “Controversa” porque Vera Santana não se conformava com os currículos, materiais e metodologias que era obrigada a implementar dentro da sala de aula. Inconformada com o modelo de ensino do estado potiguar, decidiu se mudar para o Rio de Janeiro em busca de aprendizado, transformação e liberdade no fazer. Nas terras cariocas, Vera adentrou em secretarias de ensino e cultura, em escolas, salas de aulas, faculdades e trouxe para estes espaços seu jeito controverso de pensar, apoiada pelas filosofias e ensinamentos de Darcy Ribeiro, o então ministro da educação no Brasil, e Amir Haddad, teatrólogo muito reconhecido e premiado. Sua passagem no Rio é longa, chegando a casar e a ter uma filha. No campo profissional, articulou eventos culturais com grandes famosos da época e dirigiu uma rede de centenas de escolas, articulando serviços na secretaria de educação.

​Não diferente, o Welison encontrou no judô um dos seus melhores amigos, o Mateus. Lembra que começou a lutar ainda novo, também entrando na adolescência. Sua iniciação se deu por causa da sua avó, com quem morava, pois, ao não permitir que o neto ficasse na rua brincando, o pôs no judô para que ocupasse o tempo. Welison afirma que sua infância poderia ter sido mais proveitosa no sentido de brincar, mas o esporte o ajudou a superar os desafios e a trazer esse aspecto físico que não pôde ser aproveitado quando pequeno. Logo se apaixonou pela luta e se envolveu cada vez mais, e também oportunidades lhe foram concedidas por esse universo da arte marcial.

​Os dois jovens hoje atuam como professores de judô, ou senseis na classificação técnica. Além disso, são estudantes de graduação em educação física e conseguiram suas bolsas também por causa do esporte. Estudaram juntos no ensino médio em uma escola da elite carioca na zona sul da cidade, por meio de uma bolsa-atleta. Ao lembrarem desse momento, destacam a alegria de ter um ensino de qualidade antes da faculdade e as dificuldades que tiveram para se manterem nesse período. O êxodo geográfico-social que tiveram de praticar durante três anos, saindo do Complexo e indo para a zona sul, uma das regiões mais ricas da cidade, foi um choque de realidade imenso para eles. Ali entenderam as desigualdades que preenchem a sociedade brasileira. Durante o período escolar, batalharam para não serem reprovados porque tinham dificuldades de estudar devido ao cansaço que o deslocamento por meio do transporte público gerava. Mesmo sendo destaques na escola por serem atletas, eram marcados como diferentes por serem meninos negros da periferia. Ainda assim, com muitos desafios, ambos conseguiram se formar e levaram essa experiência como única na vida, pois intensificou em seus corações o desejo da mudança social e o agradecimento por conseguirem desenvolver habilidades intelectuais importantes ao dia a dia.​

Já mais velha, decide voltar à sua terra de origem para iniciar um novo processo, uma nova fase na sua vida. Entendendo que a sua atuação direta nas secretarias e escolas havia encerrado, Vera fundou a Associação Terramar, tendo como projeto principal o Conexão Felipe Camarão. O nome do projeto faz referência a um bairro pobre da zona oeste de Natal, RN, onde o projeto está localizado. O bairro é reconhecido pela presença histórica de quatro mestres responsáveis pelos pilares de atuação do projeto que trabalha com crianças, adolescentes e jovens, a valorização da cultura local, o desenvolvimento integral e o sentimento de pertencimento ao território a partir da cultura do Auto do Boi de Reis (Mestre Manoel Marinheiro), o teatro de bonecos de João Redondo (Mestre Chico Daniel), o ensino da rabeca e outros instrumentos (Mestre Cícero) e, por fim, a capoeira (Mestre Marcos, o único mestre da região vivo atualmente). Junto com estes homens e valorizando as suas artes, Vera conectou centenas de jovens com uma cultura que percorre anos de existência em Felipe Camarão e que corria o risco de se perder com a partida dos mestres.

Ao pensar em si, Vera se recorda de tudo isso e sente grande prazer na sua trajetória, dedicada principalmente ao ensino e à cultura. Hoje, deseja descansar e colher os frutos do seu árduo trabalho, aproveitando o tempo com seu neto que inicia sua jornada na faculdade e olhando as crianças e jovens, que cuidou por muito tempo, preservando uma história que para ela tem grande regozijo​.

Créditos

Produzido por Agência EDN
Texto: ​Lucas Gregório Viana
Fotos: Pedro Paquino e Maykon Lima

Ficha técnica do vídeo

Produzido por Agência EDN
Direção: Camila Vaz
Direção de fotografia e câmera: Pedro Paquino
Assistente de fotografia: Maykon Lima
Drone: Pedro Paquino
Som: Maykon Lima
Produção: Lucas Gregório Viana
Produção executiva: Camila Vaz
Edição e finalização: Pedro Paquino
Colorização: Gabriel Felício
Arte e Motion: Camila Ribeiro e Davi Araújo
​Libras: Juliana Gonçalves​